quinta-feira, julho 29, 2010

Fui para aquela parte em que Camilo Castelo Branco coloca-se à frente de sua narrativa para, heroicamente, dizer de Simão:

“E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe idéias aflitivas, que os romancistas raras vezes atribuem a seus herói. Nos romances todas as crises se explicam, menos a crise ignóbil da falta de dinheiro. Entendem os novelistas que a matéria é baixa e plebéia. O estilo vai de má vontade para coisas rasas. Balzac fala muito em dinheiro; mas dinheiro a milhões. Não conheço, nos cinqüenta livros que tenho dele, um galã num entreato de sua tragédia a cismar no modo de arranjar uma quantia com que pague ao alfaiate, ou se desembarace das rédes que um usurário lhe lança, desde a casa do juiz de paz a todas as esquinas, de onde o assaltam o capital e juro de oitenta por cento. Disto é que os mestres em romances se escapam sempre. Bem sabem eles que o interesse do leitor se gela a passo igual que o herói se encolhe nas proporções destes heroizinhos de botequim, de quem o leitor dinheiroso foge por instinto, e o outro foge também, porque não tem que fazer com ele. A coisa é vilmente prosaica, de todo o meu coração o confesso. Não é bonito deixar a gente vulgarizar-se o seu herói a ponto de pensar na falta de dinheiro, um momento depois que escreveu à mulher estremecida uma carta como aquela de Simão Botelho.”

E, antes, já havia se colocado outra vez adiante da história para dizer de sua heroína, Teresa, algo parecido:

“Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de Tadeu Albuquerque. É mulher varonil, tem força de caráter, orgulho fortalecido pelo amor, despego das vulgares apreensões, se são apreensões a renúncia que uma filha faz de seu alvedrio às imprevidentes e caprichosas vontades de seu pai. Diz boa gente que não, e eu abundo sempre no voto da gente boa. Não será aleive atribuir-lhe uma pouca de astúcia, ou hipocrisia, se quiserem; perspicácia seria mais correto dizer. Teresa adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na estrada real da vida, e que os melhores fins se atingem por atalhos onde não cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis são raros na idade inexperta de Teresa; mas a mulher do romance quase nunca é trivial, e esta de que rezam os meus apontamentos era distintíssima.”

Isto quer dizer que a curiosidade que me atraiu no romance de Camilo Castelo Branco, a de encontrar um autor atormentado, envolvido dos sofrimentos de se estar numa cela de cadeia, ao contrário, se depara com um narrador cheio de lucidez e, afastado de sua narrativa, consciente de que está a conduzir um folhetim, afastamento que me fez pensar no estilo de Machado de Assis, que, aqui no Brasil, veio depois.
Eis o exemplo do que me fez, outra vez, lembrar Capitu:

"Era máxima sua que o amor, aos quinze anos, carece de consciência para sobreviver a uma ausência de três meses. Não pensava errado o fidalgo, mas o erro existia. As exceções têm sido o ludibrio dos mais assisados pensadores, tanto no especulativo como no experimental. Não era muito que Tadeu Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e coração de mulher, cujas variantes são tantas e tão caprichosas, que eu não sei se alguma máxima pode ser-nos guia, a não ser esta: “Em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando alternadamente como se hão de desmentir umas às outras”. Isto é o mais seguro, mas não é infalível. Aí está Teresa que parece ser única em si. Dir-se-á que as três da conta, que diz a sentença, não podem coexistir com a quarta, aos quinze anos? Também o penso assim, posto que a fixidez, a constância daquele amor, funda em causa independente do coração: é porque Teresa não vai à sociedade, não tem um altar em cada noite na sala, não provou o incenso de outros galãs, nem teve ainda uma hora de comparar a imagem amada, desluzida pela ausência, com a imagem amante, amor nos olhos que a fitam, e amor nas palavras que a convencem de que há um coração para cada homem, e uma só mocidade para cada mulher. Quem me diz a mim que Teresa teria em si as quatro mulheres da máxima, se o vapor de quatro incensórios lhe estonteasse o espírito? Não é fácil nem preciso decidir. E vamos ao conto."

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