sexta-feira, janeiro 24, 2014



Suadouro da manhã. Cigarras gritando ascendendo o dia.
Abri a janela. Comecei a digitalizar minha agenda de 1988, ano em que me empreguei como professor do Estado.
Peguei isso, veja, leit@r:

“17 de abril de 1988

Não há nenhuma flor agora.
Faz meses e não existe flores. Não estou perguntando que fim levaram todas as flores.
Existem sobrados muito brancos, que quando a família acorda – e eles têm o seu quarto de dormir, sempre no segundo andar – quando ela acorda, as flores estão entrando pela janela, caídas suspensas nos ramos, há ramos curvando-se à varanda.
Essa é uma maneira feliz de se viver as flores. Deve haver outras maneiras e disto podemos ter certeza, porém aqui onde vivo, não há nenhuma flor e delas, ninguém tem falta. Também, não há nenhuma exclamação. O que há é essa afirmativa: não há flor – o tom é monótono. Dos entristecidos, dos melancólicos...
Sou uma pessoa burra, paralisada. E isto não é pela ausência de flores. As flores não são burras. As pedras, sim, são desprovidas de inteligência, por que são paradas. A inteligência das pedras tem sua existência fora das pedras. No entanto, as galinhas e as minhocas são inteligentes nelas e não fora delas. Isso é reparável. Sempre fui uma pessoa burra. Sempre tive essa posição fixa dos burros, das pedras.
Às vezes, fico parado embaixo das plantas, à sombra do meio-dia, ruminando minha existência burra, espantando as moscas, suspendendo a pata e deixando-a cair gostosa no chão. Se tiver alguma formiga passando, ela é esmagada e não percebo.
Há muitas coisas que não percebo e tais coisas são como pedras, melhor, como montanhas, mais simples, sem inteligência dentro, uma pedra no meu caminho, que não percebo.
Ao que percebo, devo a minha liberdade. Através da percepção cavo buracos que atravessam os mundo.
Ao que acabo de dizer, julgo um dito difícil. Eu não entendo. O que importa é que sou um homem infeliz. E quero registrar minha infelicidade, agora, na agenda. Nessa hora em que as flores não existem e que me dão direito à infelicidade. Entendo a infelicidade como uma chance a ser aproveitada, antes que acabe.
Uma coisa que me incomoda é o tom contínuo, o ritmo continuado de minha emoção, quando escrevo. Gostaria de modificar essa melodia. Isso seria possível, se eu usasse agora uma exclamação, uma interrogação, uma frase curta, um período longo. Pelo uso de cores?
Flores vermelhas ao sol!
Há flores!”


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